Hoje venho contar-vos uma história, mostrar-vos uma ferramenta e, caso seja bem-sucedido, desfalcar a vossa fé no homem enquanto agente capaz de produção artística escrita genuína e original.
Se eu vos disser que todos os filósofos não são mais do que meros chefes de cozinha? Que todos os discursos políticos são uma bula de medicamento? Que todos os escritores não são mais do que meras marionetas. Que o Saramago é tão génio quanto aquele miúdo que copia em todos os testes. Que o próprio acto de escrever é uma farsa e que o conceito de criatividade é pragmaticamente o mesmo que o acto fraudulento do copianço? E se eu vos disser que a genuinidade é a mentira primordial da racionalidade e da existência humana? Que a genuinidade não é mais do que uma barbie com quem os deuses brincam e a qual vergam consoante os seus caprichos?
Hoje venho contar-vos uma história.
Uma das mais extraordinárias peças da literatura contemporânea começa da seguinte forma, e passo a citar: "El universo (que otros llaman la biblioteca)".
Em 1941, discutivelmente um dos escritores mais proeminentes da literatura mundial, Jorge Luis Borges, escreve um conto, inspirado num ensaio seu uns anos antes, que se viria a tornar paradigmático chamado "Biblioteca de Babel". Sucintamente, conta-nos a história de um homem que vive numa biblioteca que é todo o Universo. Esta biblioteca, que se julga infinita — conta-nos — está representada da seguinte forma: câmaras hexagonais, ligadas entre si por dois corredores em duas paredes opostas, num dos corredores existe uma casa de banho, no outro uma cama. As restantes 4 paredes são 4 estantes, cada uma com 5 prateleiras, cada prateleira com 40 livros, cada livro com 400 páginas, cada página com 40 linhas e cada linha com cerca de 80 caracteres. No fundo, conta-nos o narrador, estima-se, por investigações feitas por outros antes do seu tempo, que a biblioteca contenha todas as combinações das 25 letras do alfabeto. Estamos a falar de todos os livros escritos, todos os livros a serem escritos neste exato momento e aqueles cujos escritores ainda nem sequer nasceram. Falamos de todos os documentos alguma vez redigidos e os seus rascunhos. Falamos da Bíblia, se quem a escrevera tivesse sido o Diabo; os Maias, mas em vez de irmãos eram pai e filha; O Memorial da Adega; a carta dos direitos desumanos e o discurso "I Have a Dream", escrito por Adolf Hitler.
Acredito que já me tenham entendido. No fundo, nesta biblioteca está presente tudo. Todas as respostas a todas as questões que a humanidade alguma vez terá. Todas as curas para todos os cancros. Todos os prémios Nobéis da Literatura. A solução para as viagens intraplanetárias. A verdadeira resposta à questão mais importante da humanidade: quem é que nasceu primeiro — a galinha ou o ovo? e por que razão havia a galinha de passar para o outro lado da estrada?
Hoje venho contar-vos uma história e mostrar-vos uma ferramenta.
Este, senhoras e senhores, é o Jonathan Basil, e o jonathan, tal como eu, é um apaixonado por Borges, mas ao contrário de mim, também por matemática. Tem um MBA e um PHD em estudos comparativos e tomou a iniciativa de fazer algo cujo único adjectivo possível é "extraordinário".
O Jonathan Basil tomou como inspiração a tal história contida no livro Ficciones do Borges e decidiu materializá-la. Decidiu dar vida ao Universo que outros chamam de Biblioteca.
O Jonathan criou um site chamado [thelibraryofbabel.info](http://thelibraryofbabel.info/) no qual, após várias deliberações sobre as iterações no design das câmaras hexagonais a partir do texto de Borges, e de alterações do mesmo em seguintes edições, traduz gráfica e digitalmente, com o rigor estético possível, essa mesma biblioteca.
Deixem-me mostrar-vos como navegar nela.
Noam Chomsky, indiscutivelmente o pai da Linguística Moderna, escreveu em 1968 um livro chamado Language and Mind, em que reúne os três ensaios mais paradigmáticos e que resultaram naquilo que hoje temos como a linguística moderna. Num dos ensaios diz, a certa altura, que "quando estudamos a linguagem humana, aproximamo-nos daquilo a que alguns podem chamar de "essência humana", as qualidades distintivas da mente que são, tanto quanto sabemos, únicas ao humano.”
Mas aqui estamos, perante uma biblioteca que nos diz que este exato excerto se encontra neste exacto hexágono, cujo nome é indecifrável, na estante da primeira parede, na segunda fila e no vol.13? Está este excerto, mas encontramos, se procurarmos, o seu ensaio completo bem como a totalidade do seu livro.
E agora?
Seremos nós pautados apenas pela nossa capacidade de articulação de ideias e exposição linguística do mundo ou haverá espaço para a criatividade noutros âmbitos da experiência humana? De que forma somos criativos?
Terá a criatividade escape apenas na produção escrita? Será apenas nesse aspecto que empregamos esta capacidade que, como Chomsky disse, nos torna humanos?
Suponhamos que sim, que a criatividade é essencial à produção escrita e intrinseca à produção de pensamento crítico do mundo. Como lidar então com a premissa que a Biblioteca de Babel de Borges nos apresenta de que tudo está já escrito?
No fundo, podemos olhar para o argumento da seguinte forma: se tudo o que
poderá vir a ser dito e escrito, já o foi e só falta desenterrá-lo, então na verdade
tudo se mantém igual. A ideia da totalidade não é necessariamente novidade.
Vivemos com ela todos os dias. Tudo é total se tudo for ao mesmo tempo
éfemero e acredito ser essa, talvez, a resposta. Porque não fosse a existência humana
marcada pela sua finitude, a totalidade, o tempo, seria apenas uma outra
dimensão para se conquistar como a altura, a largura e o comprimento. Seria
uma dimensão pela qual navegaríamos como quem rema uma canoa rio
abaixo.
Hoje venho contar-vos uma história, mostrar-vos uma ferramenta e desfalcar a vossa fé no homem.
No final do ano passado, a empresa Open AI tomou por assalto o mundo com a democratização do CHAT GPT3. Foi a primeira vez na história da humanidade que a população geral teve acesso a um modelo de linguagem de grande escala treinado num quasi infinito conjunto de dados. Um modelo de linguagem capaz de se relembrar de coisas ditas e pedidas, manter uma conversa e resolver tarefas técnicas e teóricas.
Para terem uma breve ideia da quantidade de dados a que foi sujeito este modelo de linguagem, deixo-vos com alguns números: foi treinado com trezentos mil milhões de tokens (conceito da linguística que consiste em palavras individuais num dado texto ou corpus linguístico).
Poupar-vos-ei as tecnicalidades de como se treina um modelo de linguagem autorregressivo deste calibre, mas fiquem sabendo que para um ser-humano ler esta quantidade de dados demoraria entre 5 a 10 mil anos de leitura continua 24 sobre 24 horas.
É impossível sermos sequer capazes de entender a magnitude destes números. O Ser humano encontra-se delimitado por constrições biológicas, condições que não se aplicam às máquinas. E esta premissa, a da constrição temporal da existência humana, torna tanto a Biblioteca de Babel como os avanços científicos relativos à inteligência artifical e tudo aquilo que consigamos extrair de ambos apenas uma ferramenta, nunca um produto final.
Chegamos por fim à questão principal: como é que um artista, um músico, um escritor, um filósofo, um intelectual, lida com o facto de nada daquilo que escreve poder ser verdadeiramente original?
Estando nós ainda tão longe da mestria do tempo, a descoberta do que poderá já eventualmente estar escrito é equivalente ao ato genuíno de o pensar pela primeira vez e escrever. O vivermos um número finito de anos torna o empreendimento artístico, mesmo que matematicamente previsível, irrefutavelmente inédito. Procurar pelo próximo prémio Nobel da Literatura na infinita Biblioteca de Borges é semelhante a escrevê-lo.
A criatividade não é mais do que um processo de reinterpretação e expressão pessoal do já existente, em vez da procura por algo completamente novo e original.
Aceitarmos que só somos criativos enquanto formos finitos é aceitar que a originalidade humana é intrínseca e inalienável à finitude biológica.
Muitas das imagens que viram hoje nestes slides foram criadas por inteligência artificial, cujo código foi escrito por nós. Pela nossa fome de mais e melhor. Por novas formas de encarar o futuro e os estímulos do mundo que nos rodeia.
A criatividade vem em muitas formas e feitios, mas a mais perfeita será sempre a forma humana.
O nosso lugar é apenas um fragmento da genialidade na obra de arte que é todo o universo a que outros chamam de biblioteca.